sexta-feira, 30 de novembro de 2018

EN2 “ao contrário” #2/2

2.º Dia (6 de Outubro, sábado)

Neste segundo dia de viagem ficámos sem a companhia de duas motos que tiveram que regressar mais cedo a casa devido a compromissos inadiáveis. A caravana ficou assim reduzida a quatro alemãs (BMW R1200GS) e à minha japonesa (Honda VFR800Fi), que com este cenário, das duas uma, ou a VFR tornar-se-ia na outsider do grupo durante o resto da viagem, ou seria a viajante mais importante com uma escolta à altura! Não sei porquê mas preferi identificar-me com a segunda situação... :)

Com a corrente lubrificada (há que cuidar da máquina para não ter surpresas desagradáveis), saímos do parque de estacionamento do hotel ao início da manhã para a conclusão da travessia da EN2, com uma temperatura amena e que deveria chegar perto dos 25ºC lá mais para o meio do dia. E o regresso ao asfalto não podia ter sido melhor, com um magnífico troço de curvas largas e excelente piso até à Sertã, mesmo a pedir um andamento um pouco mais vivo e empenhado que deixou a VFR “como peixe na água”.

Mas ainda antes de entrar na Sertã, o traçado antigo da EN2 não acompanha esta rápida variante, passando mais à esquerda por Junceira e Portelinha até chegar à Ponte da Isna, sobre a ribeira com o mesmo nome, já no centro da vila. Daqui até à Barragem do Cabril são praticamente 20 km de curvas, quase sempre com o IC8 por perto. É aqui que se atravessa o Rio Zêzere e onde se dá a transição do distrito de Castelo Branco para o distrito de Leiria, ou seja, de Pedrogão Pequeno para Pedrogão Grande.

Barragem do Cabril (Rio Zêzere). 

Uma breve paragem neste local serviu para aliviar o ambiente que, de repente, tinha ficado um pouco pesado ao atravessarmos esta zona que foi extremamente fustigava pelo trágico incêndio florestal de Junho de 2017, considerado o maior de sempre e o mais mortífero da história do país. Mas rapidamente as coisas animaram à medida que nos aproximávamos de Góis, especialmente depois de passar por localidades com nomes curiosos como Senhor dos Aflitos, Escalos Fundeiros, Venda da Gaita ou Picha.

A entrada no distrito de Coimbra acontece com a travessia da Ribeira de Mega, um pouco antes do marco do quilómetro 300, onde a EN2 se transforma numa das melhores estradas do país (na minha modesta opinião), com magníficas paisagens, excelentes curvas e um piso a condizer. Um verdadeiro regalo para quem gosta de andar de moto. Não é certamente por acaso que a vila de Góis é palco de uma das mais agradáveis concentrações nacionais, um verdadeiro chill out para motociclistas, que visitei em 2014. Por aqui parámos, na sede do Góis MC, com o propósito de esticar as pernas e tomar um café, mas o resultado foi o mesmo que tivemos no “café oficial da EN2” (Ciborro) no dia anterior. Fechado! Só nos restou fazer a mesma coisa... seguir viagem. 

Sede do Góis MC (quilómetro 271 da EN2). 

A partir de Penacova e com a aproximação da Barragem da Aguieira começa a grande dificuldade em seguir o traçado original da EN2. Nesta zona, onde boa parte da estrada ficou submersa pelas águas da barragem na década de 1980, não há como fugir ao incaracterístico IP3, especialmente na travessia dos Rios Mondego e Dão, este último já no distrito de Viseu. Mas ainda há locais interessantes onde a EN2 é perfeitamente transitável, como por exemplo na passagem pela Livraria do Mondego para observar mais de perto os seus “livros” de pedra... que na realidade são altas assentadas de quartzíticos silúricos, dispostos praticamente na vertical como se fossem livros arrumados numa estante. 

“Livraria do Mondego” (Penacova). 

Passámos depois pelo Vimieiro (e pela casa onde nasceu António de Oliveira Salazar), por Santa Comba Dão e por Tondela a caminho de Viseu (o marco do quilómetro 200 da EN2 deveria ficar algures por aqui, mas desapareceu certamente devido à construção do IP3 e dos seus acessos, ou então nós não conseguimos descobri-lo). A terra do herói português Viriato, também famosa pelas suas inúmeras rotundas, é considerada uma das cidades com melhor qualidade de vida do país. Foi por aqui que almoçámos umas saborosas tranches de salmão grelhado e umas magníficas pataniscas com migas.

Magníficas tranches de salmão grelhado no almoço à entrada de Viseu. 

A viagem pela EN2 prosseguiu em direcção a Lamego (com algum peso extra nas motos), a rolar planalto fora quase sempre na companhia da A24, passando por Castro de Aire e por mais localidades com nomes curiosos como Moura Morta ou Colo do Pito. Depois de Bigorne (um dos pontos mais elevados de toda a EN2), a estrada assume um perfil bastante sinuoso até à chegada ao Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, onde efectuámos uma pequena paragem para reunir o grupo que já vinha um pouco disperso.

Escadório do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios (Lamego). 

Deixámos a segunda maior cidade do distrito para cumprir os cem quilómetros finais da EN2 (o respectivo marco apareceu pouco tempo depois de termos saído de Lamego), atravessando a região de Trás-os-Montes e Alto Douro, uma das mais belas de Portugal, que corresponde aos distritos de Vila Real e Bragança. Mas para aqui chegar ainda temos a travessia do imponente Rio Douro pela Ponte da Régua, com vista privilegiada para o ponto de ancoragem da rota fluvial de Cruzeiros que sobem e descem o rio. Aqui estamos em plena Região Demarcada do Douro, a primeira região demarcada e reconhecida do mundo e Património Mundial da UNESCO. É também aqui que tem início o troço da EN222 até ao Pinhão, num total de 27 km, que foi considerado como a melhor estrada do mundo em 2015 (World's Best Driving Road). 

A vila de Santa Marta de Penaguião fica já ali, a menos de 10 km de distância, local onde no dia 5 de Novembro de 2016 foi constituída a Associação de Municípios da Rota da Estrada Nacional 2 - AMREN2, criada no âmbito de um ambicioso projecto turístico que visa a dinamização desta estrada histórica, onde decorreu o descerramento simbólico e comemorativo da réplica de um marco da EN2 (41°12'39.1"N 7°47'14.0"W). Neste mesmo concelho realiza-se a já famosa “corrida mais louca do mundo”, que é como quem diz o singular evento Xassos Urban Cup, uma prova de 3 Horas de resistência para motorizadas a 2T com 50 cm3 que decorre na Vila de Fontes (estive lá no passado mês de Julho).

Marco comemorativo da criação da AMREN2 (Santa Marta de Penaguião). 

Prosseguindo pelo vale do Rio Sordo, a EN2 retoma o seu perfil mais “enrolado” a caminho da cidade de Vila Real, a capital do distrito que por vezes é referida como Vila Real de Trás-os-Montes. Outrora conhecida como a “Corte de Trás-os-Montes” devido à grande quantidade de casas brasonadas que então tinha, vale a pena uma visita, entre outros, à Torre de Quintela, ao Solar de Mateus e, já agora, ao traçado do histórico circuito citadino.

Daqui para afrente a EN2 passou a assumir um perfil de planalto, com rectas e zonas de curvas suaves, que nos levou até Vila Pouca de Aguiar. Para além do granito, omnipresente por estas paragens, esta região é famosa pelas suas águas termais (Termas de Pedras Salgadas e Termas de Vidago) e águas gasocarbónicas (Pedras, Salus, Vidago e Campilho). Talvez poucos se lembrarão, mas estas localidades também fizeram parte da centenária Linha Ferroviária do Corgo, cujas estações e apeadeiros tinham precisamente as designações de Pedras Salgadas, Salus, Vidago e Campilho.

Com o final da tarde chegava também o final da viagem. A entrada na cidade de Chaves foi efectuada com o Rio Tâmega por perto até ao marco que assinala o quilómetro zero da EN2, colocado no centro da rotunda que interliga a Rua Cândido Sotto Mayor com a Av. Eng.º Duarte Pacheco/N103 e a Av. D. João I/N103. Estava assim cumprida a minha segunda travessia integral da Estrada Nacional 2, a maior do país, desta vez desde Faro (Algarve) até Chaves (Trás-os-Montes)!

O fim da viagem no início da EN2 (decididamente “ao contrário”!). 

Qual alpinista que acabou de atingir o cume do Monte Everest (LOL), foi com uma sensação de conquista que deixámos este local, ao qual entretanto tinham chegado outros motociclistas, também eles a quererem saborear o seu momento de glória. Atravessámos a Ponte Nova (Ponte Barbosa Carmona) sobre o Tâmega para chegar ao Hotel Premium Chaves - Aquae Flaviae, onde ficámos (bem) instalados depois de um reconfortante jantar num local bem perto da Ponte Romana (Ponte de Trajano, o ex-libris da cidade), que incluiu alguns produtos típicos da gastronomia da região: o presunto e a posta!

O presunto aconchegou o estômago antes do prato principal do jantar em Chaves.

Hotel Premium Chaves - Aquae Flaviae. 

No domingo, dia 7, deixámos a cidade flaviense pela fresca da manhã, com uns pouco convidativos 8ºC de temperatura ambiente, para a viagem de regresso a casa. O sentimento geral era um misto de satisfação e de alguma tristeza, primeiro pela travessia deste pequeno mas belo país, com toda a sua diversidade de paisagens, cultura e gastronomia, por uma estrada icónica que, apesar das boas intensões de organizações como a AMREN2, acaba por saber a pouco face ao fraco interesse demostrado pelas povoações na promoção da nossa “estrada mãe”, onde a pouca marcação existente da Rota da EN2 é disso um bom exemplo.

Ainda assim, percorrer os cerca de 740 km da Estrada Nacional 2, seja de norte para sul ou de sul para norte, é uma experiência extremamente enriquecedora que, em meu entender, deveria ser realizada pelo penos uma vez por todos os motociclistas, nacionais e não só, como demostra o recente interesse de nuestros hermanos nesta verdadeira espinha dorsal do interior do país.