quarta-feira, 30 de junho de 2021

Museus e Colecções Particulares #12

Museu Motom (Colecção de Paulo Sá e Cunha)
 
Referenciada desde a idade média pelas suas casas senhoriais e vinhedos de boa cepa, Curvos é uma pequena aldeia do extremo leste do concelho de Esposende, onde a maior parte dos locais vive da agricultura e onde as estradas, ou caminhos, só têm um pouco mais de movimento no verão quando os seus emigrantes vêm passar as férias à terra.
 
À primeira vista poderá parecer uma aldeia como tantas outras do Minho mas há algo que faz dela, pelo menos para os apaixonados por motos clássicas, um local diferente dos restantes. É que graças a um filho da terra, o Eng.º Paulo Sá e Cunha, ela alberga a maior colecção do mundo dedicada à marca italiana Motom.
 
Entrada do Museu Motom.  
 
As origens
 
A Motom, marca pouco conhecida nos dias de hoje, já foi o terceiro maior construtor de motos de Itália em meados dos anos 50 do Séc. XX, depois da Moto Guzzi e da Garelli. Foi fundada em 1947 na cidade de Milão por Battista Falchetto (famoso engenheiro da área automóvel, ex-braço direito de Vincenzo Lancia), em parceria com a família De Angeli-Frua que queria diferenciar os investimentos da área têxtil para aproveitar a oportunidade de produzir veículos económicos, para os quais era fácil prever uma grande procura após a Segunda Guerra Mundial.
 
Inspirada pelo sucesso de vendas do motor Cucciolo da Ducati, a Motom concebe um ciclomotor completo com um motor do mesmo género, um monocilíndrico de 48cc a 4 tempos, económico, com boas prestações e elevada fiabilidade, montado num peculiar do quadro prensado em forma de ‘X’, vindo a obter nos anos seguintes um assinalável sucesso comercial e desportivo. Estas características, entre outras, chamaram a atenção de Paulo Sá Cunha, fascinado desde muito jovem por veículos de 2 rodas com motor.
 
Mais tarde, fruto do trabalho desenvolvido ao longo dos últimos 40 anos e após ter conseguido completar a sua colecção com o único modelo da Motom que lhe faltava então, no dia 22 de Setembro de 2018 foi oficialmente inaugurado o Museu Motom, situado numa bucólica Quinta em Curvos, Esposende, da qual é proprietário e onde também produz o seu vinho verde “Museu Motom”.
 
Paulo Sá e Cunha com as suas Motom. Via
 
Esta colecção monomarca de Paulo Sá e Cunha, membro fundador da Associação Portuguesa do Motociclismo de Época, é um exemplo pouco comum entre as pessoas que se dedicam ao coleccionismo. “Para mim o que faz sentido é que uma colecção tenha um princípio e um fim, senão corre-se o risco de passar uma vida sem nunca concluir a dita colecção, seja ela de que espécie for”, refere o próprio.
 
A grande qualidade dos restauros e a atenção colocada nos detalhes/particularidades de cada modelo, alguns bastante raros, são bem demonstrativos de toda a dedicação que Paulo Sá e Cunha colocou na sua colecção (todos os exemplares estão em condições de funcionamento), evidenciando um grande conhecimento sobre esta marca que floresceu em Milão no final dos anos ‘40 e encerrou a sua linha de produção em 1970.
 
Decorrente de um acordo entre o proprietário e o Município de Esposende, o museu pode ser visitado aos Domingos, durante o período da manhã, mediante agendamento prévio através de e-mail (psc@zonmail.pt). A entrada é livre.
 
A colecção
 
Neste museu único estão reunidos exemplares de todos os modelos produzidos pela Motom, sem excepção, sendo a maior e a mais completa colecção do mundo da marca transalpina. Cobiçada por inúmeros coleccionadores, sobretudo italianos mas também de outras nacionalidades, Paulo Sá e Cunha é frequentemente consultado sobre todo tipo de dúvidas, pois é reconhecido como um dos maiores especialistas nesta matéria.
 
Falar dos exemplares expostos no museu é, inevitavelmente, falar na história da Motom e das suas criações ao longo das mais de duas décadas de actividade produtiva. O primeiro modelo da marca italiana, a Motomic, foi desenvolvido por Battista Falchetto (ex-Lancia) e apresentado em 1947 no Salão de Genebra. O seu nome nasce da fusão das palavras ‘moto’ e ‘atomica’.
 
Motom Motomic 12/2 (1947).
 
Ligeira mas robusta, está equipada com um motor monocilíndrico de 48cc a 4 tempos, refrigerado a ar, com válvulas à cabeça (OHV) e 1,4 hp de potência, desenvolvido pelo engenheiro de motores Giuseppe Sola (também ex-Lancia). Tinha como principais características a fiabilidade, um baixo consumo de combustível (75 km com um litro de gasolina, ou seja, 1,33 l/100 km) e um bom desempenho (velocidade máxima em terceira velocidade superior a 50 km/h, com uma inclinação máxima de 22%). A caixa é de 3 velocidades com comando no punho.
 
O quadro tipo monocoque em forma de ‘X’ chamou a atenção pela sua singularidade, sendo composto por duas “conchas” de metal prensadas e soldadas entre si, sem tubos. Apenas tem os guarda-lamas, o depósito, o banco e o guiador como peças separadas. A suspensão dianteira é bastante simples, com a forquilha acoplada a um pequeno paralelogramo, amortecida por molas helicoidais na frente do guiador. Não tem suspensão traseira.
 
A transmissão final é por corrente e estava equipada com pedais capazes de movê-la mesmo com o motor desligado, servindo para colocar o motor em funcionamento. Ao todo, pesava cerca de 35 kg. Alguns lembrar-se-ão das Motom pela característica do guiador que concentrava nele todos os comandos necessários à condução: a mão esquerda controlava a caixa de velocidades, a embraiagem e o travão dianteiro; a mão direita operava o travão traseiro e o acelerador.
 
O exemplar presente no museu é o n.º 500 dos cerca de 5.000 que foram produzidos. A Motomic não chegou a ser exportada para Portugal e actualmente é considerado um modelo muitíssimo raro.
 
Em evidência, o museu apresenta então as diferentes versões da Série 12 da Motom, produzida entre 1947 e 1956. Para além da referida Motomic (1947), encontram-se expostos os modelos 12/A (1948), 12/C (1949), 12/D 1.ª Versão (1951), 12/D 2.ª Versão (1952), 12/E 1.ª Versão (1953), 12/E 2.ª Versão (1953), 12/E 3.ª Versão (1954) e 12/E 4.ª Versão (1955).
 
Motom 12/A (1948), 12/C (1949) e 12/D 1.ª Versão (1951).    
 
Motom 12/D 2.ª Versão (1952), 12/E 1.ª Versão (1953) e 12/E 2.ª Versão (1953). 
 
Em 1952, início da exportação para Portugal, a Motom enviou uma Motomic de Corrida desenvolvida no seu departamento de investigação. Concebida a partir de um quadro 12/C (1949/50), ainda de estampagem horizontal, é propulsionada por um motor assente no bloco n.º 195, mas já com lubrificação à cabeça. Constando de catálogos, não é conhecido outro exemplar, sendo assim considerado único ou quase único.
 
Motomic de Corrida (1950). 
 
Ao longo dos anos, o motor Motom sofreu apenas mudanças marginais (por exemplo, a lubrificação das válvulas suspensas) que foram suficientes para melhorar significativamente seu desempenho, tanto que os modelos desportivos da década de 1960 ultrapassaram 75 km/h, mantendo o consumo de combustível excepcionalmente baixo.
 
O comando da caixa de velocidades, inicialmente efectuado por haste, foi substituído por cabos. Quanto ao quadro e mantendo a estrutura em ‘X’, ao longo dos anos foi sofrendo algumas inovações (a estampagem passou a ser vertical), sendo a suspensão dianteira de mola progressivamente substituída por forquilha telescópica e a traseira, inicialmente rígida, foi equipada com dois amortecedores de mola.
 
O depósito dos primeiros modelos era inserido dentro do quadro monocoque. Posteriormente, foi adoptado um depósito sobre o quadro para aumentar a autonomia. O selim sempre foi particularmente confortável devido às suas grandes dimensões e boa suspensão. Nos primeiros modelos, por baixo do selim havia um porta-objectos cilíndrico, substituído nos modelos seguintes por uma caixa de maior capacidade, inserida entre o quadro e a secção traseira.
 
Os modelos passam a ser designados por Motom 48 (produzidos entre 1954 e 1970) e têm igualmente grande destaque nesta exposição. São eles o 48 E 1.ª Série (1954), 48 E 2.ª Série (1955), 48 E 3.ª Série (1955), 48 L (1955), 48 S Exportação (1956), 48 LL (1956), 48 LL Exportação (1957), 48 GG (1957), 48 C (1960), 48 Dona (1962), 48 Cross (1965) e 48 C Kick Start (1969).
 
Motom 48 S Exportação (1956) e 48 LL (1956) e 48 LL Exportação (1957).    
 
Motom 48 Dona (1962), 48 Cross (1965) e 48 C Kick Start (1969).
 
Soluções estéticas particularmente atraentes foram estudadas para os modelos desportivos, como a cobertura do farol, o banco longo, o guiador estreito e rebaixado. Estas características podem ser observadas nos modelos 48 Sport 1.ª Série (1955), 48 Sport 2.ª Série (1956), 48 Super Sport 1.ª Série (1958), 48 Super Sport 2.ª Série (1960), 48 Super Sport 3.ª Série (1962), 48 Super Sport Júnior 4.ª Série (1963) e 48 Super Sport Júnior 5.ª Série (1967). Para acentuar ainda mais este carácter desportivo, poisa-pés fixos com accionamento do travão traseiro foram introduzidos no modelo 48 SS Júnior 4.ª Série, substituindo assim os habituais pedais.
 
Motom 48 Sport 1.ª Série (1955).
 
Motom 48 Super Sport 2.ª Série (1960).
 
Motom 48 Super Sport Júnior 4.ª Série (1963).
 
Desde muito cedo que a competição fez parte do ADN da Motom, tendo obtido inúmeros sucessos ao longo dos anos em diversos tipos de provas de pista e rampas. Foi inclusive detentora de recordes mundiais de velocidade, obtidos em 1958 no Circuito de Monza. Os modelos presentes no museu são exemplares únicos (ou quase), desenvolvidos com o propósito específico da competição.
 
Memorabília sobre as Motom de competição. 
 
Motom 50 Corsa F2 (baseada na 50 Sport) vencedora do Campeonato Italiano de Montanha (1962) – Italo Piana (piloto). 
 
Motom 50 de pista (5 velocidades) – Scuderia de Maurício Cavalloni.
  
Motom 104 - 48C competição: Modelo original de 5 velocidades (1962) e réplica de 4 velocidades (com peças de origem). 
 
Os anos do pós-Segunda Guerra Mundial foram tempos difíceis para a maioria dos países europeus, e em Itália não foi excepção. Com a reconstrução, impunha-se a recuperação económica do estado em sectores vitais como a indústria e o comércio. Numa sociedade ainda com forte predominância rural, havia também que ajudar as populações a refazerem as suas vidas e a retomarem as suas actividades. A produção de alimentos revestia-se naturalmente de especial importância, com as empresas nacionais a criarem maquinaria específica para esse fim. Foi neste contexto nacionalista que a Motom, com base no seu comprovado motor de 48cc a 4T, desenvolveu as Motocultivadoras M1 (1957), M2 (1958/61) e M3 (1962/66), às quais podia ser aplicada uma bomba de irrigação, bem como um Motocarro (1957/58), com capacidade total de carga de 150kg.
 
Motocultivadoras (M1 de 1957, M2 de 1958 e M3) e Motocarro (1957) Motom.
 
As necessidades de modernização da economia e da sociedade criaram enorme procura por novos meios de transporte e infra-estruturas. A duplicação do PIB italiano entre 1950 e 1962 teve um enorme impacto na sociedade que, excluída dos benefícios da economia moderna durante a primeira metade do Séc. XX, de repente foi inundada com uma enorme variedade de bens de consumo baratos, tais como automóveis, televisores e máquinas de lavar.
 
Neste contexto, apesar dos ciclomotores de 48cc da Motom serem económicos, robustos e fiáveis, o seu custo de aquisição era algo elevado face a outras propostas existentes no mercado, devido à maior complexidade dos motores a 4 tempos relativamente aos motores a 2 tempos, com inevitáveis consequências ao nível do número de veículos vendidos.
 
No início da década de 1960, a marca italiana lança uma nova linha de ciclomotores, com motores de 50cc a 2T fruto de uma parceria com a Peugeot, mais baratos de produzir e com um preço mais competitivo. Os novos modelos correspondem às gamas Nova (1963/66) e Daina (1967/69), com diversas versões, das quais fazem parte o desportivo Nova 50 Sport 1.ª e 2.ª Série (1966/67) e o 121 Cross (1969/70). Para muitos aficionados da Motom, foi a partir daqui que começou o progressivo declínio da marca que, devido a vários factores, acabou por levar ao fecho de portas em 1971.
 
Motom Peugeot (1963), Nova 40 (1965) e Nova 50 (1966).
 
Motom Nova 50 Sport 1.ª Série (1966).
 
Motom Daina 3 (1968), Dainella (1969), Dainella Emme (1969), Daina Lusso (1969).
 
Embora a imagem da Motom esteja essencialmente associada ao ciclomotor de 48cc, a marca italiana também construiu motociclos de gama superior, com diversas versões dos modelos 51 (1957/59), 60 (1960/69), 92 (1961/63), 98 (1955/60), 100 (1963/70) e Delfino 160 (1952/60). Destes, destaca-se o elegante e potente 98TS (1955), um modelo com design futurista que parece mais uma concept bike do que uma moto de produção, que lhe valeu honras de exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), na XI Triennale de Milão de 1957 e mais recentemente um 1.º prémio no Concurso de Elegância de Villa d'Este de 2015.
 
Motom 92 (1961) e 100 Junior (1963). 
    
Motom 98TS (1955). 
   
Motom Delfino 160 (1952/60), uma simbiose entre uma moto e uma scooter.
 
Um magnífico museu de características únicas em Portugal, fruto do trabalho meticuloso de Paulo Sá e Cunha que levou quatro décadas para reunir todos os exemplares da histórica Motom, uma marca importante durante o chamado “milagre económico italiano”, um período de grande crescimento económico em Itália entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o final da década de 1960 (em particular os anos 1958/63).
 
Para além da dedicação à Motom, que o leva inclusive a participar nos encontros anuais de aficionados da marca no Autódromo de Monza, Paulo Sá e Cunha tem na sua garagem uma interessante colecção de automóveis da Auto Union DKW, a histórica marca alemã associada a motores a 2 tempos, bem como alguns outros exemplares de diferentes marcas. De “encher o olho” são os Auto Union DKW 1000 Sp (o “Ford Thunderbird europeu”) e um imponente Jaguar E-Type V12.
 
Informações  
 
Morada: Curvos, Esposende
E-mail: psc@zonmail.pt
Horários: Domingo de manhã (com marcação prévia por e-mail)
Entrada: Livre